RAZOABILIDADE, PLURALISMO E EDUCAÇÃO
SEGUNDO JOHN RAWLS

Sidney Reinaldo da Silva1
Doutor em Filosofia pela UNICAMP.
Professor do Programa de Pós-graduação em Educação –
Mestrado em Educação- da Universidade Tuiuti do Paraná.

Resumo

Concepções morais podem se tornar incompatíveis e mesmo irreconciliáveis. Na escola, isso tem uma repercussão especial, mas não muito diferente do que ocorre em outros espaços públicos. Mostro que o que vai ser ensinado na escola e à forma como se decide sobre isso podem ser enfocados a partir da concepção de razoabilidade proposta por Rawls, a pesar das críticas às quais estão sujeitos os seus pressupostos ético-políticos.
Palavras-chave: Razoabilidade; Escola; John Rawls

EDUCATION AND REASONABILITY ACCORDING TO RAWLS' POLITICAL LIBERALISM

Abstract

Conflicts between moral conceptions can become incompatible and even irreconcilable. In schools, this reverberates in a special way. In a pluralistic society such conflicts are not so easy to deal with. This paper shows that both what kind of values and virtues must be taught and how politically to decide about this can be focused on with the help of the rawlsian conception of reasonability dispite the criticisms it has received. Key words: Education; Reasonability; Rawls

        Neste texto mostro que o liberalismo político de John Rawls é um contraponto necessário para se pensar a relação entre pluralidade e espaço público. A escola fundamental é um lugar apropriado para desenvolvimento do senso moral, das virtudes políticas, como a tolerância, o respeito mútuo, a reciprocidade, e o senso de eqüidade e civilidade. Com isso ela fortalece formas de pensar e sentir que sustentam a cooperação eqüitativa entre cidadãos. Mas, nas democracias constitucionais de uma sociedade pluralista, não cabe à escola obrigatória promover uma doutrina abrangente como única e exclusiva fonte de valores para a formação da cidadania. Uma doutrina abrangente é, para Rawls (1993), uma concepção geral que se aplica universalmente a um vasto aspecto da vida ou a um grande leque de objetos. Ela organiza valores de modo que sejam compatíveis entre si e expressem uma visão de mundo inteligível. Doutrinas abrangentes são sistemas e perspectivas de vida coerentes dados por visões de mundo, de pessoa e de sociedade, valores, e crenças comuns sobre como as coisas devem ser. As pessoas têm afeições, saberes e devoções, dos quais não poderiam se distanciar para avaliá-los com objetividade. Seria mesmo impensável alguém sem vínculos de lealdade, convicções religiosas, filosóficas e morais. Pessoas se expressam através de concepções abrangentes.
        Na escola, deve se discutir até que ponto e como ela incentiva ou desencoraja certas doutrinas abrangentes e seus modos de vida ou como ela pode educar cidadãos nas virtudes cívicas sem, contudo, atacar os valores ou promover de forma unilateral ideários específicos de um certo grupo ou parte da sociedade. Numa democracia constitucional, tal como John Rawls a concebe, a educação básica deve promover a familiarização das pessoas com a cultura política pública. Retomo que não se trata apenas de discutir a respeito do máximo ou do mínimo do conteúdo ético a ser ensinado, mas também o estatuto “público” de tal conteúdo, sua adequação à “concepção política” de cidadão.
        Nas sociedades modernas, diferenças entre concepções abrangentes mostram o quanto estas podem se tornar incompatíveis, conflitantes e mesmo irreconciliáveis. Na escola, isso se repercute de modo especial. Assim existem diversificadas propostas de ensino, de método e recurso pedagógico para se formar pessoas. Na definição dessas propostas, ocorrem disputas entre diversos matizes de concepções individualistas e comunitaristas de formação moral (MARQUES, 1998). John Rawls propõe uma concepção de esfera política, baseado na razão prática, que possibilita refletir a respeito da divergência dessas concepções no espaço público.
        A razão prática, para John Rawls (1993), se expressa, de modo especial, como capacidade de distinguir o ponto de vista público de perspectivas não públicas. Com isso a pessoa pode representar, pensar, questionar e argumentar no interior de uma concepção política, tornando-se apta para participar da vida pública. A concepção política possibilita a articulação de valores e formas de argumentar específicos e não de todos os valores a todas as formas de argumentar. Ela se baseia em princípios da razão prática e concepções de sociedade e pessoa deles decorrentes.
        O exercício da razão prática ocorre, por exemplo, na imaginação de um hipotético estado de natureza a partir do qual se poderia definir a forma mais justa para se organizar uma sociedade. Trata-se de um ponto de vista partilhado para se argumentar quando cidadãos discutem e deliberam no âmbito público. Em sua obra Uma teoria da justiça, o autor fala de uma fictícia posição original como um esquema moral em que as pessoas são tomadas como livres e iguais, o que facultaria o estabelecimento de princípios para uma sociedade justa.

        Posteriormente Rawls apresenta também o construtivismo político:

The principles of political justice are the result of a procedure of construtution in which rational persons (or their representatives), subject to reasonable conditions, adopt the principle to regulate the basis struture of society. The principles that issues from a suitable procedure of construction, one that properly expresses the requisite principles and conceptions of practical reason, I think of as reazonable. The judgments those principles support are also reasonable. (1993, p.xx).

        Trata-se de um esquema segundo o qual a discussão pública sobre as questões políticas fundamentais podem ser razoavelmente decididas, tais como as que se referem às questões constitucionais essenciais e de justiça básica. A concepção do campo político opera também como dispositivo para se construir uma perspectiva partilhada capaz de modular o consenso entre os cidadãos: “(...) the political is a module, an essential constituent part, that fits into and can be supported by various reasonable compreensive doctrines that endure in the society regulated by it” (1993, p. 12).
        John Rawls destacada duas capacidades morais: a racionalidade e a razoabilidade, respectivamente, a capacidade de conceber um bem, um projeto de vida e de buscar os meios adequados para realizá-los e a capacidade de propor e aceitar acordos justos, de negociar regras e normas com ponderação e reciprocidade. A primeira mantém correlação com a razão estratégica e a segunda com a civilidade e a capacidade de negociar consensos e contratos justos. A razoabilidade diz respeito a valores da esfera política, e exige uma formação que favoreça o florescimento de virtudes políticas, sem as quais a pessoa não poderia participar do debate público. O modo como devem ser formadas as capacidades morais na escola exige a negociação razoável entre os profissionais da educação. Assim, ao se decidir, na escola obrigatória, como e quais virtudes cívicas serão ensinadas para se formar cidadãos razoáveis, exige-se razoabilidade.
        John Rawls apresenta dois princípios para regular a sociedade bem-ordenada (1993,pp. 5-6). O primeiro princípio (o da liberdade) propõe que todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, desde que compatível com todos os demais; em tal projeto, somente as liberdades políticas deverão ter a garantia de eqüidade. O segundo princípio, dividido em duas partes, estabelece que as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: devem estar vinculadas a posições e cargos aberto a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades (princípio da igualdade de oportunidades); devem representar o maior benefício possível para os membros menos privilegiados da sociedade (princípio da diferença).
        Esses seriam os princípios fundamentais segundo os quais a constituição de um país seria formulada, e que, a partir dela, regulariam a produção da legislação ordinária, os atos do executivo e do judiciário. Os princípios possibilitam também o controle das políticas sociais. O princípio da diferença seria aquele cuja observação levaria a sociedade rumo à igualdade. Contudo, como mostra Parijs (2003, p. 210), Rawls oferece várias razões para não se usar princípio da diferença nas decisões a respeito da justiça entre gerações assim como entre povos. Além do mais, o princípio da diferença não é recomendado também para regular a conduta individual, mas apenas para as instituições (PARIJS, p. 233).
        Para Rawls, esses princípios deveriam ser aceitos por pessoas racionais e razoáveis com sendo os alicerces éticos para se regular a estrutura básica da sociedade, ou seja, a forma como o sistema de instituições distribui benefícios e encargos numa sociedade. Além de tais princípios da justiça serem apontados como coerentes com a cultura pública ocidental, eles são tomados também como expressão do senso de justiça dos seres humanos, o qual se desabrocharia com uma educação adequada.
        Conforme a teoria da justiça de Rawls (2003a), o senso de justiça estaria presente no ser humano em decorrência da evolução da espécie. Se este traço não tivesse sido selecionado, certamente a humanidade não teria sobrevivido. O senso de justiça tende a se desenvolver nas pessoas que não sofreram doenças ou desvios no interior da família e dos processos educacionais. Contudo, em sociedades injustas, o florescer da competência moral estaria em risco. Mas, de qualquer forma, haveria uma tendência na humanidade segundo a qual, pessoas que crescessem sob instituições justas, poderiam adquirir o senso de justiça.
        O primeiro princípio da justiça garante o direito à liberdade, protegendo a autonomia como um valor essencial para a realização do indivíduo. Cabe a uma sociedade bem ordenada garantir as condições básicas para uma vida autônoma. Para isso, se deve garantir às pessoas uma lista de bens primários, como renda, riquezas, oportunidades de acesso a posições de autoridades e cargos valorizados pela sociedade. Se tais bens não forem eqüitativamente distribuídos, a liberdade não teria o mesmo valor para todos, pois a autonomia exige o acesso eqüitativo a um mínimo de benefícios sociais. Rawls salienta que
The concept of the appropriate minimum is not given by the basic needs of human nature taken psychologically (or biologically) apart from any particular social world. Rather, it depends on the fundamental intuitive ideias of person and society in terms of which justice as fairness is laid out” (RAWLS, 2003b, p. 132).

Embora esse mínimo possa variar conforme a concepção de pessoa de uma sociedade, sem ele não se poderia falar de dignidade ou de uma base objetiva para a construção da auto-estima das pessoas.
        A garantia das condições básicas para uma vida autônoma depende de uma educação que faculte, ao longo da vida, qualificação profissional, sem a qual não se pode garantir a igualdade de oportunidades de acesso a empregos e cargos, e que possibilite desenvolvimento das capacidades morais, indispensáveis para a vida cívica. O direito à educação torna-se então fundamental numa sociedade bem ordenada. Os recursos públicos destinados à educação devem ser negociados de modo que não se desrespeite os princípios da justiça. A educação compulsória precisa ser publicamente controlada, nas diferentes instâncias deliberativas, para se garantir o desenvolvimento das capacidades morais, bases da autonomia racional e razoável da pessoa.
        Nem todas as formas de moralidade são razoáveis, assim como nem todas as formas de se justificá-las e defendê-las o são. Os processos pedagógicos que suprimem a autonomia humana são condenáveis do ponto de vista da justiça como eqüidade. Ela rejeita o ensino que manipula o comportamento ou que reprime.
A person’s sense of justice is not a compulsive psychological mechanism cleverly installed by those in authority in order to ensure his unswerving compliance with rules designed to advance their interests. Nor is the process of education simply a causul sequence intended to bring about as an end result the appropriate moral sentiments (2003a, p. 452).

        Cabe ao educador perguntar a si mesmo se acredita que a moral (princípios, valores, concepções de pessoa, sociedade, justiça e vida boa) que propõe como devendo ser reconhecida como válida e, enquanto tal, ensinada, seria dada diretamente para apenas alguns eleitos, tais como sacerdotes, pastores e profetas ou para todas as pessoas razoáveis e conscienciosas; se ela deriva de uma fonte externa, de uma ordem de valores existente no intelecto de Deus ou surge na especificidade humana, em sua razão e sentimentos, juntamente com as condições de vida em sociedade; e também se a pessoa é levada a cumprir suas obrigações por algum tipo de motivação externa, como sanções divinas, o aparato repressor estatal, ou se ela possuí em si mesma motivos suficientes que a levariam a agir como deve, sem a necessidade de ameaças externas (1993, p. xxvi-xxvii).
        Rawls inclina-se pelas segundas alternativas, reconhecendo que essas são as opções de pessoas politicamente liberais, ou seja, razoáveis. No texto Uma teoria da Justiça, de 1971, ele se mostra afinado com a concepção construtivista da formação moral, sendo claramente partidária das idéias de Rousseau, Kant, Piaget e Kohlberg. É admitida a seqüência de três estágios, conforme a qual se davam as seguintes etapas: moralidade de autoridade, de grupo e de princípios. Esses são momentos de formação do senso moral, em que progressivamente o indivíduo aprenderia a confiar nos outros, especialmente naqueles por quem foi bem tratado; a ver as questões a partir de perspectivas diferentes; a ser capaz de reciprocidade; a conceber uma perspectiva comum mais ampla, que se estenderia para além daquela de sua família e nação, enfim, de se tornar moralmente autônomo.
        Mas Rawls, no texto O liberalismo político, de 1993, reconhece que a concepção de formação humana liberal construtivista é “abrangente” e não poderia ser endossada, enquanto tal, como base da perspectiva política. Por mais que ela fosse afinada com a concepção política da justiça como eqüidade, ela não poderia ser adotada como padrão a ser ensinado em escolas obrigatórias. O liberalismo político de Rawls não se confunde com os liberalismos abrangentes de Kant e de Mill. Para ele, não é moralmente necessário e desejável que todos os valores morais sejam construídos, não só na perspectiva do político, mas também na vida cotidiana das pessoas, como admite Kant. Nem muito menos seria razoável supor que todos devessem ser autônomos o tempo todo. Algumas pessoas poderiam submeter livremente sua conduta aos ditames de igrejas e associações às quais se filiam, sem, contudo, deixarem de ser razoáveis.
        A razoabilidade, segundo Rawls, é necessária para a convivência democrática numa sociedade pluralista. Sem ela, não haveria um entendimento mútuo mínimo mas suficiente para se propor e lidar com questões de justiça social. Nesse sentido, a capacidade de ser razoável possibilitaria a construção do que o filósofo denominou de consenso sobreposto.
        A idéia de um consenso sobreposto pressupõe que nenhuma concepção abrangente, por mais que penetrasse no interior da “cultura pública”, poderia constituir-se numa base comum para a construção de uma democracia constitucional e para conceber princípios de justiça para o ordenamento social. Uma comunidade unida pela aceitação de uma única doutrina abrangente, exigiria o uso do poder opressivo estatal para manter a comunhão política, ocorrendo, então, o fato da opressão. Nesse caso, a intolerância seria não razoável. O pluralismo seria uma realidade histórica que teria vindo para ficar. Não se trataria de um fenômeno passageiro que seria superado no momento em que uma determinada concepção abrangente tomasse o poder. Contudo, o pluralismo não é irredutível na perspectiva pública ou no campo político, onde as pessoas são reconhecidas como livres e iguais, o que é garantido por uma educação que possibilite o desenvolvimento adequado das capacidades morais.
        A questão é a de saber como os cidadãos, que continuassem profundamente divididos em relação às doutrinas religiosas, filosóficas e morais, poderiam manter, apesar disso, uma sociedade democrática e estável. Para que isso ocorra, os cidadãos precisam ser concebidos como livres e iguais numa perspectiva passível de ser compartilhada por todos. Essa perspectiva, tal como proposta por Rawls, não é uma concepção religiosa ou filosófica da pessoa, mas pública e normativa. Adaptada a um esquema político de justiça e não a uma doutrina abrangente, o filósofo propõe uma concepção da pessoa como uma unidade básica de pensamento, deliberação e responsabilidade, capaz de ser um membro normal e cooperativo de uma sociedade justa (1993, p. 18). Nesse sentido político, publicamente, os cidadãos se reconhecem como livres e iguais.
        O prisma político é um modulo autônomo, com valores específicos, no qual as concepções abrangentes razoáveis se ajustam, num processo de formação para a vida pública. A concepção política é enfocada como educadora, “as educator” (1993, p. 70). A educação pública básica precisa estar em sintonia com a modulagem do político. Não se trata, porém de uma concepção mínima da educação cívica, minimal conception of civic education, como mostra Costa (2004), onde se procuraria reduzir ao máximo o que seria ensinado como base comum de valores para não interferir demasiadamente na formação moral das crianças, evitando com isso interferir em prerrogativas das famílias e das comunidades. A concepção política de formação moral não se define pelo quanto a ser ensinado. Ela se caracteriza pela forma como re-modula e cria uma superfície de interface entre as concepções abrangentes.
        Uma sociedade justa deveria admitir a existência de várias doutrinas abrangentes razoáveis ainda que conflitantes cada qual com suas próprias concepções de bem e cada uma coerente com a concepção política de pessoa. Assim produzir-se-ia um equilíbrio entre valores políticos e não políticos, um consenso sobreposto (overlapping consensus) entre elas. A concepção política não é cética ou indiferente: embora tenha seus valores específicos, ela mantém-se congruente com as concepções abrangentes (1993, p. 151).
        Pessoas razoáveis são capazes de aprender e dominar os princípios da razão prática (1993, p. 112). Cabe ao ensino, como transmissor da cultura política pública, exercitar a razão prática familiarizando as pessoas com a razoabilidade. Deve se aprender quando e como discordar publicamente, e saber apresentar razões apropriadas para avaliar as instituições. O cidadão deve saber que nem todo valor passará no teste discursivo ou será um valor político, e que nem todo equilíbrio de valores é razoável. Aprenderia também que é inevitável e desejável que os cidadãos tenham visões diferentes do que vem a ser uma concepção política mais apropriada, pois a cultura política pública está fadada a conter diferentes idéias fundamentais, que podem ser desenvolvidas de formas diferentes. É necessário aprender que o contínuo debate ordenado entre elas é a forma mais confiável de descobrir qual é a mais razoável, se alguma o é.
        Na escola obrigatória, a liberalismo político de Rawls exige que, entre outras coisas, se ensine também a pessoa a conciliar os dois traços de identidade moral, o público e o privado. Com isso, o ensino levaria cada um a se entender criticamente como pertencendo a uma associação moldada por uma doutrina abrangente ou por fins intrínsecos definidos pelos interesses de associações as quais ele pertence. Por outro lado, aprender-se-ia o significado do pertencimento a uma democracia que lhe exige expressar a partir do ponto de vista político, compartilhado por todos, ainda que diferentes doutrinas abrangentes razoáveis fossem professadas. A formação moral tornaria também o cidadão disposto a oferecer sua contrapartida eqüitativa contribuindo para com a arrecadação pública de impostos que garantiria um patamar de vida razoável para todos os membros da sociedade de cujo esquema cooperativo se é beneficiado.
        É destacável o estudo da escola conforme o pensamento de Rawls realizado por Gutmann (1987). Ela indica as características específicas de uma escola “multicultural”, propondo uma formação cívica de modo a conciliar o “multiculturalismo”, democracia e o liberalismo. Escolas devem apresentar um propósito cívico partilhável por todos os cidadãos. Trata-se de buscar um equilíbrio entre as exigências exageradas de uniformidade do “universalismo transcendental” e as expectativas demasiadas restritas de uniformidade dos particularistas que propõem escolas separadas. Os valores da escola politicamente liberal “multiculturalista” seriam: as liberdades básicas, a igualdade de oportunidades e a deliberação baseada em procedimentos justos.
        A questão moral da educação pode ser referida também ao princípio da diferença. A respeito dos valores, a escola pode definir-se pelo ideário de favorecer os menos favorecidos como diretriz da formação moral. Assim, uma escola poderia não tolerar práticas pedagógicas que incentivem o individualismo e a competição. Contudo, isso não pode ser feito transgredindo os dois primeiros princípios, o da liberdade igual e o da igualdade de oportunidades. Somente a partir dessa restrição, uma escola pode entender que o ensino de valores solidários favoreceria os menos privilegiados, pois futuramente contribuiria para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Mas ao continuar tolerando práticas pedagógicas fomentadoras da competição e do individualismo, a sociedade bem ordenada de Rawls resguardaria o espaço para a reprodução do ethos capitalista.
        A concepção de razoabilidade de Rawls tornou-se alvo da crítica marxista e dos relativistas pós-modernos. Para os primeiros, é destituída de sentido uma proposta de razoabilidade concebida no interior de uma sociedade definida pelas forças cegas do mercado, que produzem sempre uma iniqüidade incapaz de ser ajustada por mecanismos de redistribuição que não desmantelem de fato o processo básico de acumulação capitalista. Seria “não razoável”, portanto, construir e partilhar um ponto de vista moral baseado numa concepção de pessoa como “livre e igual” e, a partir dele, regular uma sociedade definida em última instância pelo mercado, fator gerador de desigualdades econômicas e sociais. Já para os relativistas pós-modernos, frente às irredutíveis diferenças de gênero, valores e concepções de mundo, a proposição de um ponto de vista comum seria uma quimera, até mesmo uma violência, sendo que “razoável” seria aprender a fazer política sem consenso em diferentes e irredutíveis esferas políticas.
        De qualquer forma, as idéias de John Rawls são um contraponto que não pode ser ignorado tanto no que concerne à investigação das práticas institucionais, como as que ocorrem na escola, quanto para se definir um quadro normativo para a busca de entendimento ou para se lidar razoavelmente com o desentendimento, dentro de uma moldura pública não fragmentada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, M. Victoria. Rawlsian Civic Education: Political not Minimal. Journal of Applied Philosophy. Vol. 21. January 2004

GUTMANN, A. Democratic Education. Princepton: Princepton University Press, 1987.

MARQUES, Ramiro. Ensinar valores. Teorias e Modelos. Porto: Porto Editora, 1998.

PARIJS, Phelipe. “Difference Principles”. In: The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cabridge Univesity Press, 2003.

RAWLS, John. A Theory of Justice. Revised Edition. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Havard University Press, 2003a.

____________ Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1993.

__________ Justice as Fainess. A Restatement. Cambridge, Massachustes, London, England: Havard University Press, 2003b.

____________ The Law of Peoples. Havard: Havard Univesity Press, 2002.



NOTAS
1- Doutor em Filosofia pela UNICAMP. Professor do Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado em Educação- da Universidade Tuiuti do Paraná. Autor do livro: Instrução pública e formação moral. A gênese do sujeito liberal segundo Condorcet. Campinas –SP: Editora Autores Associados, 2004. Endereço: Rua Engenheiro Niepce da Silva, 422, apto 02. Bairro Portão. Curitiba. CEP – 80610-280. Fone: 41-32297054; 41-33317796. E-mail: sreinald@uol.com.br .